Sobre as séries
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O Todo Pela Parte (2013)
Penso sobre minhas primeiras lembranças, as mais profundas de minha infância. Cenas de praias. Nítidas, quase perfeitas, que, conforme tento me aproximar, para entender melhor de que detalhes elas são feitas, vão se diluindo, como se fossem uma trama, que vai se despenteando, se desfazendo, desalinhavando, ficando em minhas mãos apenas os fios que a formavam.
Não consigo saber o que são estas lembranças, se são reais ou construídas: será que eu as vivi de fato ou são apenas relatos e imagens roubados que eu fui tomando para mim como meus e unicamente meus? Nestas lembranças mais básicas e fundamentais, percebo que não há lembranças puras, reais retratos do que eu vivi. Construções de minutos tecidos instantaneamente, imediatamente. Transformação involuntária e descontrolada de imagens, sentimentos e experiências que me leva a cozer inclusive o que não vivi. Tomo um pequeno momento vivido e o transformo em algo maior. Tomo uma pequena parte e a transformo em um grande todo.
As fotografias produzidas atualmente são de fidelidade cristalina, alta definição e verossimilhança indiscutível. Demasiada informação que não me permitiria fotografar uma lembrança.
Em O Todo Pela Parte, tento tecer imagens que mostram como minhas memórias são fragmentadas, repletas de lacunas, buracos, rupturas, tal qual uma trama, e que, por isso, a compreensão vem de interpretação.
Aqui, os detalhes escondem e a falta revela.
Linha Amarela (2012)
“Desdobramento da série Transitórios, Linha Amarela toma o pulso da veia subterrânea da cidade de São Paulo e poetiza o serpentear de vagões e o fluxo intenso de passageiros. Ao desconstruir imagens, o fotógrafo Diego Kuffer cria caleidoscópios surreais e transforma o cotidiano de túneis e trens.”
- Roberta Dezan, Efêmero Concreto
Crononauta (2012)
O que molda a nossa visão é a experiência. Conforme o caminho é percorrido, diferente será a percepção que temos do mundo. Como se o tempo fosse uma bruma que vai se esmaecendo, descortinando o novo no antigo, mesmo que por trás desta haja ainda mais bruma. São as sombras na parede que vão perdendo nitidez conforme nos aproximamos da entrada da caverna, mas que nos faz chegar mais perto do que realmente está do lado de lá.
O tempo é um corredor homogêneo, qual uma extensa estrada reta, que nos ilude sobre quanto foi percorrido e quanto há a percorrer. E é por este caminho, um túnel de mão única, que vemos tudo; este caminho nos serve para entender o mundo.
Encontramos no relógio uma maneira de matematizarmos este percurso, tornando-o material, consistente e, assim, nos ajudando a entender, mesmo que momentaneamente, a ilusão e como esta areia escorre de fato.
Crononauta é uma tentativa de mostrar esta viagem monótona e, principalmente, finita que fazemos no tempo, como ele age sobre nós e como nós agimos nele. O Crononauta em questão não é o relógio, apenas uma estaca no tempo; o Crononauta do qual a foto fala é você que está a ver o relógio.
Comunhão (série em produção)
A diversidade de habitantes em São Paulo é tamanha que qualquer tentativa de desenhar uma média é o exercício de construção de um golem: algo que existe apenas no campo místico e, portanto, imaginário. Sinto-me insultado, como paulistano, cada vez que vejo uma estatística em uma sentença com “na média…”. Um Frankenstein é o que resulta.
A diversidade econômica, a amplitude enorme entre os mais ricos e os mais pobres, faz parte de minha paisagem cotidiana. Não deve haver cidade no mundo com pessoas tão ricas e tão pobres quanto nesta metrópole. E entre estes pontos extremos, um irregular degrade se estende. Todos compartilhando a cidade, mas não os mesmos espaços.
Seria como se a cidade tivesse demarcações invisíveis bem definidas sobre o lugar dos mais abastados e os dos com menos posses. São linhas invisíveis e facilmente superáveis, não excludentes, a não ser quando se trata da capacidade de consumo: os lugares públicos são co-habitáveis, mas os de consumo têm barreiras monetárias.
A série Transitórios me levou a fazer uma série de articulações relacionadas à fotografia e afins. Uma destas tem a ver com o corte. Ao contrário do que ocorre por via de regra, usei o corte como ferramenta de união. Por meio dele, consegui justapor uma série de instantes e alcancei provar que um momento havia ocorrido.
Agora, em Comunhão, levo adiante a ideia de unir com o corte, para formar um golem paulistano, traçar uma média das pessoas que transitam em áreas semelhantes em seu propósito, diferenciando-se em sua classe socioeconômica. Para tornar esta junção imperfeita, como ela há de ser, ao invés de usar o computador, fiz os cortes das fotografias a mão, assim como a trama.
Um golem que deveras não existe, mas ao menos pacifica os estatísticos: trago um Frankenstein paulistano, no qual nem um nem todos se identificam, apesar de ser possível visualizar um todo inidentificável.
Intempéries (2010)
Surgiu da observação do tempo e da percepção de quão lentamente ele se esvai, mas sem perder suas estrondosas consequências. Surgiu também de meu prazer em ver a lentidão com que as nuvens se movem, se chocam, formando imagens que se transformam, apesar de parecerem paralisadas no instante.
Com Intempéries, desejo mostrar o quanto tudo está mudando – mesmo que de forma quase estática -, mas de forma intransigente, soprando um certo ar de imanência.
Transitórios (2010)
Uma das dificuldades que nós, humanos, possuímos (entre muitas, obviamente) e que me inquieta é a de conseguir perceber a passagem do tempo enquanto isto se sucede. Quando eu era criança, meu pai não se cansava de dizer “aproveite o momento”, algo que me angustiava tremendamente, pois eu sequer sabia como (ou conseguia) fazer algo tão efêmero e, simultaneamente, tão etéreo.
Mais adiante, um dos aspectos da fotografia que me seduziu foi a possibilidade de capturar momentos. Logo, no entanto, percebi que eu estava equivocado: eu era apenas capaz de recolher instantes. Um momento era algo mais longo, complexo do que uma câmera seria capaz de registrar; mesmo que o tempo de exposiçāo fosse longo, o momento se transforma em um instante borrado. O que me levou a esta constatação foi ter observado que a foto captura apenas uma fatia de um momento, fatia esta que pode ou não relatar o conteúdo do momento do qual ela foi tomada, mas, mesmo assim, não é dotada da capacidade de registrar o momento como um vídeo – conjunto de 24 fatias por segundo que ilude o receptor ao ponto de conseguir imergi-lo em um momento simulado, com começo, meio, fim.
Tentando entender a minha própria angústia, percebi que talvez meu pai era atormentado por sua própria angústia (uma que é natural a qualquer pessoa), para me pedir algo tão simples e difícil quanto curtir o momento: a morte virá. Para mim, para meu pai e para todos (inclusive para você).
O tempo é inexorável, bem como a vontade do homem de esquecer que o tempo passa, que a vida passa. Então, o pedido de meu pai era algo como “pare o tempo!” ou “aproveite a juventude enquanto ela durar”. Duas ideias impossíveis para quem viveu apenas a juventude até então.
Assim, terminei por buscar capturar o momento, através de uma câmera, mesmo tendo entendido que era algo impossível. Resolvi burlar a técnica fotográfica, embutindo muitos instantes em uma única imagem. Uma mixagem, por assim dizer. Não consigo contar o que ocorreu no momento, mas fica claro que ele ocorreu e isto, por si só, já me satisfaz.
Dejeto (2010)
A cidade é cruel. São Paulo é a cidade cruel, por excelência. Aqui, você é usado e jogado fora, não importa quem você seja.
Qualquer passeio, longo ou curto, é suficiente para observar quantos mendigos estão jogados nas ruas. Mas, alguém poderia dizer que justamente por eles serem mendigos é que estão nessa condição. É intrínseco à ideia de mendigo que ele esteja ao relento da calçada, bem como seu aspecto, suas roupas e sua origem étnica.
Mas, e se quitássemos estes últimos três suportes imagéticos da equação? Qual seria a reação das pessoas? Como elas se comportariam com esta alteração na paisagem urbana? O que aconteceria se um homem de origem europeia, usando camisa, calça social, sapatos e gravata, tudo limpo, mas deitado no chão? A cidade tentaria acudi-lo, ao “hackearmos” o corriqueiro, ou não há piedade para aquele que não se dá ao trabalho de ficar em pé?
Ator: Felipe Bittencourt